Música, arte festiva Deus é a harmonia plena. Nele não há dissonância.
Podemos imaginar a vida humana sem o canto, a música, ou a poesia? Seria impossível! A música faz parte da cultura de qualquer povo. A multiplicidade com que se combinam e se entrelaçam os sons, para compor, enfim, um fio melódico ou um canto, é um dos elementos pelos quais se pode aferir a riqueza dessa cultura.
Diferentemente da arte pictórica ou escultural, a música é um tipo de arte festiva, transbordamento da alma humana, seja na alegria, seja na tristeza. Não há sentimento, não há emoção, não há poesia que não possam ser traduzidos em música, por quem tenha o dom, aliado à formação teórica necessária e que seja inspirada.
Por isso, a música é um excelente recurso para a formação do ser humano. Já os antigos filósofos como Boécio e Santo Agostinho nos falam do papel educativo que a música desempenha. Lembro-me dos serões, na casa de minha família, quando nos reuníamos para tocar e cantar. Formávamos um pequeno conjunto de cordas: minha irmã ao violão, eu tocando violino, um outro irmão, flauta de concerto, e outro, ainda, viola de concerto. Não tínhamos pretensões profissionais, até porque um ou outro desafinava no canto. Mas aqueles momentos serviram para nos unir mais e apurar o nosso gosto musical e artístico. A prática do violino me foi útil, também, como recurso didático, durante o tempo em que trabalhei com a catequese e lecionei em classes infantis.
Evidentemente, tudo isto se refere à música de qualidade, cada vez mais rara, diante do critério dominante do lucro, nos mercados de gravação e divulgação musical. No Brasil, existe raro espaço para a música clássica, por exemplo. Daí a importância de iniciativas pioneiras como as da Rádio MEC. Faço questão de registrar, aqui, meu elogio à excelente programação dessa emissora, da qual sou ouvinte assíduo, quando os compromissos me permitem. Tive a alegria de visitar, inclusive, suas instalações e tive oportunidade de assistir a alguns concertos no seu estúdio. Minha impressão foi a melhor possível, tanto pela qualidade das apresentações, como pela acolhida que recebi.
A sublimidade da música reflete a transcendência que, dentre todas as criaturas, somente o ser humano é capaz de almejar, pois foi criado por Deus para tal. Consideremos que Deus é a harmonia plena. Nele não há dissonância. Nós fazemos parte do grande concerto universal, conduzido pelo Divino Regente. Freqüentemente, porém, desafinamos, cometendo falhas inerentes à nossa imperfeição. Isso, naturalmente, contradiz o que Deus pede de nós, como imagens suas, cuja história deve reprisar a beleza e a harmonia divinas. Ele é o acorde cheio, perfeito, do qual os grandes músicos conseguem haurir a inspiração, traduzindo em suas composições algo da Perfeição Infinita.
Daí os gênios compositores que a história conhece, muitos dos quais se notabilizaram, também, na música sacra. Todos os estilos de composição são apreciáveis, desde que a obra seja bela. Entretanto, a música sacra tem o dom de nos aproximar mais intimamente de Deus, pois coloca a inspiração, recebida d'Ele, em função do louvor de sua glória.
A música é um poderoso meio de apostolado. A Igreja Católica emprega-a muito nas celebrações e contamos, inclusive, com ótimos corais em diversas das nossas paróquias. Temos, também, entre os nossos compositores populares, exímios pregadores da Palavra cantada, que vêm desenvolvendo um excelente trabalho de evangelização através da música. Trata-se, porém, de um campo que requer permanente cuidado, no sentido de jamais se abdicar da qualidade, pois música medíocre com letras banais, e até mesmo erradas, não evangelizam ninguém. Tornam-se, quando muito, meio de diversão superficial, distração.
Podemos encontrar uma raiz da música sacra nos próprios Salmos. O termo "salmo" (em hebraico mizmor) já significa um tipo de canto, do qual a Bíblia registra 150 composições. Na Sagrada Escritura, a música aparece destinada ao louvor a Deus. Este é o grande ideal. Porém, não se excluem as festas, inclusive com danças, as comemorações, as celebrações de todo tipo, sejam profanas, sejam sacras. A Bíblia nos dá uma panorâmica completa sobre a música e o canto primigênio de Israel.
O último dos Salmos é um belo exemplo de texto que associa o louvor a Deus com uma descrição sobre a arte da música e do canto, enumerando, inclusive, instrumentos tradicionais de Israel, como o címbalo. Dificilmente se poderá encontrar algo mais belo sobre o tema:
O canto de louvor é uma oração modulada, harmoniosa. Quem cultiva o hábito de rezar já desenvolve a harmonia interna da própria atitude de falar com Deus. Se consegue colocar isso em canto, ou em música, melhor ainda.
Quando Jesus nasceu, o Evangelho relata o aparecimento de um anjo, anunciando aos pastores a vinda do Salvador. A ele se juntou um coro celeste, cantando: "Glória a Deus no mais alto dos céus, e na terra paz aos homens por Ele amados" (cf. Lc 2,8-14). Se os coros angélicos assim se manifestaram a nós, o que dizer de seu canto junto ao trono divino? Quanta beleza deve ter!
O Livro do Apocalipse nos descreve essa imagem, na forma de milhares e milhares de anjos louvando a Deus (cf. Ap 5,11-12). Portanto, acredito que no céu vamos saborear muita música: mais sublime, mais extraordinária do que qualquer uma que conhecemos, divinal... Será uma das expressões da nossa felicidade plena, na comunhão eterna com Deus.
Dom Eusébio Oscar Scheid, scj [+ sobre ele]
Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Comentários